O caso Özil e a questão turca na Alemanha

Rod, Der Sandeo
6 min readJul 25, 2018

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Mesut Özil é alemão e quanto a isso não há dúvidas. O meia nasceu em Gelsenkirchen, surgiu no Schalke 04, passou ainda pelo Werder Bremen e passou por seleções de base da Alemanha desde o sub-19, uma trajetória comum a tantos outros “típicos” jogadores alemães, como Timo Werner ou Manuel Neuer. Özil construiu uma carreira de sucesso e se tornou uma das grandes referências do selecionado nacional ao longo desse período, sendo um dos destaques na campanha do título mundial de 2014 no Brasil. A única particularidade do jogador, ainda que não o único daquele elenco, é ser filho de turcos. Acontece que esse detalhe, na sociedade alemã, não é algo que passe despercebido.

Os turcos e sua (não) integração à sociedade alemã

A imigração turca para a Alemanha começou pouco após a década de 1950. O país europeu se recuperava dos impactos da Segunda Guerra de forma impressionante no que ficou conhecido como o Wirtschaftswunder (milagre econômico)e se encontrava em uma realidade de excesso de oferta de postos de trabalho e essas vagas foram à princípio ocupadas por gente de outros países vizinhos e de cultura mais aproximada, como italianos, gregos, espanhóis, entre outros. Junto a isso, a Alemanha também já firmava acordos de cooperação econômica com esses e alguns outros países, dentre eles a Turquia, que por sua vez vivia uma situação econômica instável e não queria se ver atrás dos rivais gregos, a quem também era destinada ajuda econômica e abertura de oportunidades na Alemanha.

A visão política alemã, porém, não via com bons olhos uma abertura a um país e a um povo não-europeu e muçulmano por receio de um choque cultural e religioso que pudesse dividir de alguma forma a sociedade desse país. Entretanto, com o contínuo excedente de oferta de trabalho na Alemanha, a inevitável aproximação com a Turquia por esta ser um Estado-Membro da OTAN no contexto da Guerra Fria e da atratividade que Bundesrepublik exercia, muitos turcos passaram a migrar para o país. Nesse começo, os turcos permaneciam por dois anos, sem levar suas famílias, e depois tinham que voltar para seu país de origem, o que supria os interesses de ambas as partes, uma vez que o principal objetivo dos turcos era juntar dinheiro e reerguer suas vidas em seu país de origem.

A partir dos anos 1960, com a situação da economia turca ainda pior, a imigração de turcos na Alemanha começou a aumentar com menos controle. Os então Gästearbeiter (trabalhadores convidados) passaram a buscar suas famílias na Turquia atraídos pelas políticas de bem-estar social promovidas pelo governo alemão, situação que aumentou a sensação de incômodo e acentuou o sentimento antipático a presença dos turcos por lá. Além disso, diferentemente da maioria dos outros povos que iam para a Alemanha atrás de emprego, os turcos de forma geral tinham uma qualificação consideravelmente inferior aos demais. Esse conjunto de elementos formou a percepção — que perdura até hoje para muita gente — de que os turcos são preguiçosos e se aproveitam dos auxílios sociais pagos pelo governo, sendo sustentados por alemães que realmente trabalham e movimentam a economia nacional. A consequência disso é a concentração de turcos nas zonas marginais das cidades, os problemas decorrentes da falta de integração à sociedade e a proliferação de piadas com tom xenofóbico como famoso meme “remove kebabs” (remova kebabs, em alusão a um dos principais pratos da culinária turco-árabe), por exemplo.

Recep Erdogan e a relação com a União Europeia

Há anos a Turquia pleiteia uma vaga na União Europeia. Sua posição física tem uma importância geopolítica fundamental para a Europa e para os interesses dos Estados Unidos por ser a transição não apenas física, mas cultural entre a turbulenta área do Oriente Médio e a Europa, tendo a maior parte de seu território na Ásia e uma menor na Europa, onde ficam as principais cidades do país. A presença na OTAN também é outro fator muito relevante nas relações entre esses atores internacionais e, em tese, contribuiria para a aceitação no bloco europeu.

O bloco europeu, por sua vez, tem como uma de suas principais exigências a prevalência da democracia, da laicidade e do equilíbrio de poderes, entre outras. Enquanto o fundador da república turca, Atatürk, forjou um país mais ocidentalizado, com o Estado separado da Igreja e outras características que os aproximariam da Europa atual, o regime de Erdogan vem seguindo o caminho contrário, principalmente após a suposta tentativa de golpe ocorrido no país em 2016. Desde então, o presidente turco vem enrijecendo a política no país, aprovou um plebiscito que transforma o governo que era parlamentarista em presidencialista (o que lhe confere muito mais poderes) e vem reprimindo violentamente movimentos de oposição. Tal situação, evidentemente, dificulta cada vez mais uma integração do país euroasiático ao principal bloco econômico do planeta e causa preocupação aos seus principais líderes, como franceses e alemães.

O caso Özil e o problema identitário europeu

Como dito no começo desse texto, Mesut Özil é alemão e foi um dos destaques na campanha vitoriosa de 2014. O jogador negou a seleção turca no passado e inclusive abriu mão dessa nacionalidade. Além dele, a Mannschaft também conta com Gundogan, de ascendência turca, e vários outros jogadores com ascendência direta não-alemã.

Ainda assim, o meia do Arsenal convive com a contestação de compatriotas quando o momento da seleção não é favorável e uma das razões para isso está no fato dele não cantar o hino. Esse incômodo não é exclusividade dele e também levantou discussões em outros selecionados nacionais, como no caso do atacante francês de ascendência argelina Karim Benzema, que acabou se aposentando da seleção e não participando do bicampeonato mundial dos Bleus, esse ano, na Rússia. A razão para não cantar, segundo Mesut, é a reza que ele faz nesse momento anterior ao começo de cada partida. De qualquer modo, a frase “quando está tudo bem, sou considerado de tal nacionalidade europeia, quando está tudo mal, sou um filho de imigrantes” é constante nas seleções europeias, tendo sido essas frases proferidas por jogadores como o próprio Özil, o atacante belga Lukaku, o francês Benzema, entre outros.

Benjamin Mendy, lateral francês, responde tweet que “desconstroi” nacionalidades dos franceses

A questão do alemão, entretanto, torna-se ainda mais grave justamente pelo fato da foto com o polêmico presidente turco. Toda a sua situação de não cantar o hino, de atuações abaixo do esperado, aliadas a uma aparição — da qual o meio garante não se arrepender — usada politicamente por um representante oficial que causa tanta controvérsia e irritação na Europa, a fama que os turcos em geral têm na Alemanha e ao fracasso da seleção na Copa do Mundo são uma vasta fonte de argumentos anti-imigração e xenófobos para a crescente representação do populismo de extrema-direita encabeçado pela AfD (Alternative für Deutschland, traduzindo, Alternativa para a Alemanha) no país mais populoso da Europa, o que é seguido por representações paralelas nos outros países do continente. Esse tipo de colocação, como a do presidente do Bayern de Munique, que disse que Özil é um péssimo jogador há tempos e um dos grandes responsáveis por um dos maiores vexames da história do futebol alemão apenas corroboram e escancaram o teor racista velado de críticas a essa classe jogadores, ainda que Mesut de fato tenha estado tecnicamente abaixo nesse último Mundial.

Özil posa para foto ao lado de Erdogan. Gundogan também participou

A conclusão é que apesar do sucesso recente de duas das seleções mais miscigenadas da Europa e do mundo, as cicatrizes das sociedades dos países europeus seguem abertas. Guardadas as proporções, assim como no Brasil, onde quase a totalidade dos jogadores vêm de bairros paupérrimos cuja população é usualmente mal vista pela maioria, nos países europeus a questão da integração de refugiados, imigrantes e seus descendentes é muito mais complexa do que uma mera conquista esportiva. É claro que é bonito ver uma França repleta de jogadores de diferentes etnias fazer uma sociedade que é demograficamente nela espelhada celebrar uma glória em conjunto, é legal ver que atletas de origens muitas vezes vistas como inferior, como poloneses e turcos, serem elevados a altos patamares de idolatria na Alemanha, mas o caminho para uma absorção verdadeira dos diferentes é muito mais longo do que 7 jogos ou um ciclo de 4 anos.

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Rod, Der Sandeo
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Written by Rod, Der Sandeo

Internacionalista e poliglota. Cerveja e gastronomia são paixões. Fluminense é minha droga. Corneteiro sensato. Sonho em presidir o Flu.

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